1855: a quebra da paz em Sant’Anna e os possíveis crimes de José Garcia Leal
A sequência de cartas a seguir mostra que a Freguesia de Sant’Anna do Paranahyba atravessava um período turbulento. Nota-se que o Presidente da Província de Mato Grosso, Augusto Leverger, recebera cartas de cidadãos paranaibenses, as quais atribuíam a José Garcia Leal o “deplorável estado da dita Freguesia”. Segundo essas cartas, o fundador de Paranaíba vinha acobertando crimes e intimidando autoridades. Daí a ação do Presidente Leverger que, naquele momento, não se encontrava em Cuiabá, mas despachava do Forte de Coimbra.
“Ao chefe de Polícia
Ilustríssimo Senhor, cartas particulares de junho, julho e agosto inspiram-me receios acerca da tranquilidade publica na Freguesia de Sant’Anna do Paranahyba, onde, segundo me referem, cometeram-se vários assassínios que ficaram impunes, e entre outros os de Antônio Ferreira e de seu filho Fidélis.
Tudo o que posso depreender dessas cartas é que atribui-se o deplorável estado da dita Freguesia a José Garcia Leal, que, dizem, intimidam as autoridades e protegem os facinorosos, em cujo número fazem menção de dois homens pardos de nome Jerônimo e Francisco Coelho, camaradas ou capangas do referido Leal.
Indicam-me como idôneos para servir os cargos policiais os seguintes indivíduos: Joaquim de Oliveira Simões, Francisco Garcia Leal, José Alves dos Santos, Joaquim Garcia Pedro Leal, Manoel Garcia Leal e José Coelho Paim. Este último já é o primeiro suplente do Subdelegado.
Não julgo conveniente demitir os outros sem haver motivo suficiente, e em todo o caso, entendo que a ser verdade o que dizem de José Garcia Leal, seria improprio e imoral nomear irmãos e sobrinhos desse homem, sendo depreciar que sejam minimamente indulgentes; ou injustamente infensos se, como suponho, a paixão ou o interesse quebrou os laços de parentesco que os une.
Cumpre que V.S. procure pelos meios a seu alcance suprir a vaga das informações referidas, e dê as convenientes providências que não se podem recorrer no lugar e na posição em que me acho. E se se tomar precisa a ida de V.S. àquela Freguesia, pode e deve partir independentemente de outra ordem minha; deixando a Policia da Capital a cargo do respectivo delegado, a quem dará as convenientes instruções, remetendo-me copia delas.
Deus guarde V.S.
Palacio do Governo de Mato Grosso em Forte de Coimbra
1° de setembro de 1855
AUGUSTO LEVERGER
[Ao] Ilustríssimo Doutor Chefe de Polícia da Província”
A próxima carta indica a exoneração do então subdelegado Joaquim Lemos da Silva, e a nomeação de Joaquim de Oliveira Simões para o cargo.
“Ao chefe de Polícia
Ilustríssimo Senhor acuso o recebimento e fico inteirado do conteúdo dos ofícios de V.S. de n° 67 a 72 e datas de 17 de Setembro a 2 do corrente mês.
Respondo em separado aos de n° 70 e 71.
Deus guarde a V.S. Palácio do Governo de Mato Grosso em Forte de Coimbra
22 de outubro de 1855
AUGUSTO LEVERGER
Ilmo. Doutor Chefe de Polícia da Província”
“Ao mesmo
Ilustríssimo Senhor___ o conteúdo do ofício de n° 71 e data de 1° do corrente não é de natureza que me tranquiliza a respeito do estado da segurança de vida e da propriedade na Freguesia de Sant’Anna do Paranahyba.
À vista do que me pondera, demiti a Joaquim Lemos da Silva do lugar de subdelegado e nomeei a Joaquim de Oliveira Simões para o dito lugar.
Poderá ser útil ou mesmo necessária a ida do Juiz Municipal àquela Freguesia para os fins que V.S. indica; mas não acho conveniente incumbir-lhe esta Comissão tão logo como entre em exercício, sendo que na Capital não lhe falta o que fazer.
Não me parecem todas e perfeitamente procedentes as razões pelas quais V.S. julga desnecessária ir pessoalmente à mesma Freguesia.
Entretanto, não lhe ordeno que vá, pois como já lhe disse, no lugar e na posição e que me acho, não posso apreciar o estado das coisas, nem tenho meios de indagar a respeito de circunstâncias que do por acaso chegam ao meu conhecimento. Porém, de novo recomendo a V.S. que não cesse de procurar informações acerca do que se passa e tem havido na referida Freguesia; e quando reconheça que se dá alguma das coisas, de que trata o Art 6° do Regulamento de 31 de Janeiro de 1842, não hesite em partir independentemente de ordem minha, na conformidade do que lhe signifiquei em oficio de 1° de setembro.
Deus guarde V.S.
Palácio do Governo de Mato Grosso no Forte de Coimbra
23 de outubro de 1855
AUGUSTO LEVERGER
[Ao] Ilmo. Dr. Chefe de Polícia da Província
Carta do Presidente ao novo subdelegado de polícia, Joaquim de Oliveira Simões; e ao Chefe de Polícia da Província, em que dá ciência sobre a nomeação do novo delegado em Sant’Anna.
“Ao cidadão Joaquim de Oliveira Simões
Tendo em Resolução desta data nomeado a V.M. para o lugar de subdelegado do Distrito de Santana do Paranaíba, assim lho comunico para sua inteligência e a fim de que prestando o devido juramento entre no exercício do referido lugar.
Deus guarde a V.M. Palácio do Governo de Mato Grosso no Forte de Coimbra 23 de outubro de 1855
AUGUSTO LEVERGER
[Ao] Sr Joaquim de Oliveira Simões”
“Ao Chefe de Polícia
Ilmo Sr. Remeto a V.S. para a sua inteligência e execução, na parte que lhe toca, a inclusa cópia autentica da Resolução desta data exonerando Joaquim Lemos da Silva do lugar de subdelegado do Distrito de Santana do Paranaíba e nomeando a Joaquim de Oliveira Simões para o dito lugar.
Deus guarde V.S.
Palácio do Governo de Mato Grosso no Forte de Coimbra
23 de outubro de 1855
AUGUSTO LEVERGER
[Ao] Ilmo. Dr. Chefe de Polícia da Província”
Aqui, o Presidente Augusto Leverger responde a uma carta do suplente de subdelegado João Coelho Paim, em cópia aberta ao Chefe de Polícia.
Nota-se a preocupação do Presidente Leverger em não despender do uso das praças de linha ou dos guardas nacionais que se encontram em Cuiabá, caso fosse necessário ao Chefe de Polícia deslocar-se até Sant’Anna do Paranahyba para resolver o problema.
“Ao Chefe de Polícia
Ilmo. Sr.
Transmito a V.S. a inclusa cópia de um oficio que recebi do suplente do subdelegado em exercício na Freguesia de Sant’Anna, e bem assim a minha resposta aberta que depois de tomar desta conhecimento, V.S. fará chegar às mãos do dito subdelegado.
Esse oficio não é de natureza que nos possa tranquilizar acerca do estado da segurança de vida e da propriedade naquela Freguesia. Reitero, portanto, as recomendações que lhe tenho feito a este respeito.
Se V.S. reconhecer que é com efeito precisa a sua ida àquela parte da Província, convirá efetuá-la o quanto antes a fim de livrar-se das dificuldades que há de apresentar o trânsito na estação das chuvas.
É escusado ponderar a V.S. que não convém de modo algum que nessa diligência se empreguem praças de linha ou guardas nacionais da Capital. É na mesma Freguesia que deve ser requisitada a força precisa para a manutenção da ordem. Sobre isto convirá que V.S. se entenda com o Comandante Superior da Guarda Nacional par que dê, pela parte que lhe toca, as convenientes providências.
Convirá igualmente que ambas se convertem com o Inspetor da Tesouraria, a fim de evitarem-se duvidas e delongas no pagamento das despesas que por ventura tiverem de ser feitas na forma do Art. 93 da Lei de 19 de setembro 1850.
Deverá essa despesa correr pela Repartição da Justiça, e como não há para isso consignação alguma, será de mister recorrer-se aos meios que faculta o Decreto de 7 de maio de 1842; no que não duvidarei empenhar a minha responsabilidade à vista da urgência do caso.
Deus guarde a V.S.
Palácio do Governo de Mato Grosso no Forte de Coimbra
02 de novembro de 1855
AUGUSTO LEVERGER
[Ao] Ilmo. Dr. Chefe de Polícia desta Província.”
Ao [suplente] subdelegado de Sant’Anna
Tenho presente o oficio de 20 de setembro último, em que V.M. (vossa mercê) me representa o estado desse Distrito, quanto a segurança individual, e pede-me providências a respeito.
Anteriormente informado, se bem que de modo muito vago, do que também vagamente me refere V.M., já eu havia ordenado ao Dr. Chefe de Polícia que tomasse conhecimento do que por aí vai e desse as convenientes providências que não posso indicar no lugar e na posição em que me acho. Reitero-lhe esta recomendação em oficio desta data, em que lhe transmito cópia do ofício de V.m. É pra esse Magistrado que deve V.M. dirigir-se e dar parte minuciosa dos crimes cometidos e dos que se recriarem, indicando quando sejam conhecidos os autores, os cúmplices e os seus protetores.
Previno porém desde já a V.M. que nas atuais circunstâncias nenhuma praça de linha pode ser dispensada das poucas que existem na Capital e muito menos das que se acham destacadas na fronteira. É à Guarda Nacional que devem recorrer as autoridades policiais para manutenção da ordem nesse Distrito, fazendo as precisas requisições, que deverão ser satisfeitas nos termos do Art. 23 do Regulamento n° 1.354 de 06 de abril de 1854.
Deus guarde a V.M.
Palácio do Governo de Mato Grosso no Forte de Coimbra
02 de novembro de 1855
AUGUSTO LEVERGER
[Ao] Sr. João Coelho Paim, suplente do subdelegado de Sant’Anna do Paranahyba
Esta carta-resposta ao Chefe de Polícia é interessante porque: 1) revela que os irmãos Garcia Leal estavam em conflito. 2) Indica que no sertão dos Garcia já não havia o perigo dos índios selvagens.
Observa-se que José Garcia Leal e o Vigário Salles estavam se comunicando com o Presidente, e ambos lhe solicitavam ajuda para que se resolvesse a crise da segurança em Paranaíba.
“Ao Chefe de Polícia
Ilmo. Sr.
Recebi o oficio n° 87 de 29 do mês próximo findo, e que V.S. [Vossa Senhoria] acrescenta novas ponderações às que me fez em oficio de 1° de outubro a respeito da sua ida à Freguesia de Sant’Anna do Paranahyba.
Responderei as objeções de V.S. na mesma ordem em que as apresenta.
1° Não são todos os habitantes daquela Freguesia aderentes, como V.S. supõe, de José Garcia Leal, que, pelo contrário, está em dissidência – se não inimestado [com inimizade, em conflito] – com muita gente e até com seus irmãos e sobrinhos.
De mais, o mesmo Leal reconhece a necessidade de ir ali um Funcionário que providencie acerca de desordens que ele atribui à fraqueza das autoridades locais, como V.S. verá das inclusas copias das cartas que há pouco recebi desse homem e do Vigário da dita Freguesia.
2° Declarando a V.S. a evidente impossibilidade em que estou nas atuais circunstâncias de empregar um destacamento de força de linha ou da Guarda Nacional da Capital em diligências policiais que hão de durar semanas e talvez meses, não foi minha intenção negar-lhe auxilio das poucas praças que possa exigir a segurança de V.S., sendo aliás que do Piquiri em diante pouco ou nada há que recear da agressão dos índios selvagens.
3° Cuido que a deplorável falta que há de cavalos e bestas contudo não é tal que V.S. não possa obter nessa Capital os animais necessários para a sua condução.
Em resumo, não acho nas referidas objeções motivo que me leve a retirar ou modificar as recomendações que tenho feito a V.S. acerca da manutenção ou restabelecimento da ordem e da tranquilidade naquela parte da Província; e repito-lhe que, na situação em que estou, nenhuma outra providência posso dar senão deixar ao zelo e providência de V.S. a apreciação da urgência e oportunidade da sua ida à mencionada Freguesia.
Deus guarde a V.S.
Palácio do Governo de Mato Grosso no Forte de Coimbra
20 de dezembro de 1855
AUGUSTO LEVERGER
[Ao] Ilmo. Dr. Chefe de Polícia desta Província”
Por fim, o Presidente Augusto Leverger responde ao ofício n°97 do Chefe de Polícia. Subentende-se que o Chefe estava receoso de indicar irmãos e sobrinhos de José Garcia Leal para compor a Companhia de Guardas Nacionais.
“Ao Chefe de Polícia
[a partir do segundo parágrafo]
E respondendo ao ofício de n° 97, tenho a dizer-lhe que não vejo por que não pode merecer a confiança do subdelegado da Freguesia de Santana do Paranaíba um destacamento da Companhia de Guardas Nacionais da mesma Freguesia, visto como não me consta que os oficiais da dita Companhia sejam cúmplices de José Garcia Leal, admitindo que, segundo depreendo do citado ofício, este homem seja com efeito réu dos crimes que lhe atribuem as cartas particulares que transmiti a V.S.
Deve V.S. estar lembrado de que as mesmas cartas, longe de culparem a todos os parentes de José Garcia, indicavam a Francisco Garcia Leal e a outro individuo da mesma família como idôneos para exercerem o cargo de Subdelegado. Se não julguei conveniente semelhante nomeação pelos motivos que ponderei a V.S., não se segue que se deve desconfiar deles a ponto de temer que faltem ao seu dever e atraiçoem a autoridade na designação que por ventura tenham de fazer dos guardas nacionais para o destacamento.
Em os meus ofícios de 1° de Setembro, 23 de Outubro, 2 e 26 de Novembro e 20 de Dezembro últimos, disse a V.S. quanto me ocorria acerca da manutenção da ordem e da segurança naquela Freguesia. Ainda uma vez lhe repito que na atualidade não posso distrair força de linha da guarnição da fronteira para o serviço policial; nem posso, do lugar em que estou e sobrecarregado de ocupações, fazer as indagações e dar as providências que pode exigir o estado da mesma Freguesia, sendo isto aliás uma das principais incumbências do cargo que exerce V.S.
Deus guarde a V.S.
Palácio do Governo de Mato Grosso no Forte de Coimbra
02 de janeiro de 1856
AUGUSTO LEVERGER
[Ao] Sr. Dr. Chefe de Polícia desta Província.”
Agradecimentos: Professora Maria Celma Borges – UFMS/Três Lagoas